CAPÍTULO 11 – ESPIRITUALIDADE E DOR
A ciência da Espiritualidade: de tema polêmico a mensurável.
A ciência é uma das artes que mais expressa a curiosidade, ousadia e inventividade da humanidade. Assuntos antes polêmicos e por vezes considerados obscuros para uma geração em um outro momento tornam-se fonte de pesquisa e conhecimento. Um destes temas é a Espiritualidade e as suas relações com a saúde. Sabe-se, por exemplo, que o conceito de dor (Cicely Saunders) engloba quatro componentes (físico, social, emocional e espiritual). Estes componentes interagem entre si promovendo o que somos e como percebemos a dor1,2.
Há algum tempo o estudo da Espiritualidade saiu do campo metafísico para o campo mensurável e aplicado na prática clínica por diversas sociedades multidisciplinares no mundo inteiro. Para melhor compreender, vamos a alguns exemplos: Robert Jastrow, quando astrofísico da NASA e fundador do Goddard Institute for Space Studies, dizia que a ciência que acreditava apenas em sua solidez com o poder da razão, terminaria como num pesadelo ao descobrir em algum momento que na escalada da montanha da ignorância em busca de conhecimento, ao chegar ao topo, muitos teólogos já estavam lá há séculos. Posteriormente, Alan Leshner, outro neurocientista, nos trouxe que sabemos mais sobre cérebro nos últimos 20 anos que em toda história documentada da humanidade. Carl Jung também dizia: “Entre todos os meus pacientes na segunda metade da vida, isto é, tendo mais que 35 anos, não houve um só cujo problema mais profundo não fosse constituído pela questão da sua atitude religiosa. Todos, em última instância, estavam doentes por terem perdido aquilo que uma religião viva sempre deu aos seus adeptos, e nenhum se curou realmente sem recobrar a atitude religiosa que lhe fosse própria. ” A expressão de Jung a respeito da religião era apenas uma parte do conceito que temos hoje sobre Espiritualidade. Uma das definições mais aceitas e que já se trata de um consenso global é a da Professora Christina Puchalski: ¨A Espiritualidade é um aspecto dinâmico e intrínseco da humanidade, através do qual as pessoas buscam significado, propósito e transcendência, e experimentam relacionamento consigo, família, comunidade, natureza e ou sagrado. ” Já a religiosidade – de forma sintética – seria uma forma de expressar a Espiritualidade, cumprindo preceitos e rituais1,3,4,5.
Estudar a Espiritualidade envolve compreender alguns conhecimentos relativamente novos para a neurociência. Para melhor ilustrar basta lembrarmos do discurso de Erick Kandel, Nobel de Fisiologia/Medicina em 2000, que menciona que a neurociência do século passado focou no conhecimento das doenças, mas que a neurociência do século no qual vivemos focará na melhor compreensão do pensamento, da consciência e das emoções6.
Não temos a pretensão de entregar respostas a todas as perguntas no campo de estudo científico da Espiritualidade. Como diz o Professor Mário Peres, um dos brasileiros mais engajados na pesquisa neste campo, “A Espiritualidade é uma ciência de fronteira”. Mas como tudo em ciência começa com a curiosidade, ousadia e inventividade, seguimos engatinhando passo a passo em busca de mais respostas. Como exemplo está o crescimento das pesquisas na área: segundo dados da plataforma PubMed, analisando artigos catalogados entre 1951 a 2000 e posteriormente, de 2000 a 2022, cruzando as palavras-chave “spirituality” e “pain”, há somente nestes últimos 20 anos 800% mais publicações que em todo século passado. E a cada dia aumenta, não somente no campo da dor, mas em diversas especialidades médicas e multidisciplinares em geral. Não somente em um grupo de países, mas a nível global7.
E como este conceito impacta nossa Qualidade de Vida?
Fica mais fácil explicar quando entendemos um outro conceito: a Gerotranscedência. A Gerotranscedência implica uma associação do envelhecimento com uma busca mais urgente de significados que podem ser encontrados em práticas espirituais e religiosas, mas também em relacionamentos e em empreendimentos sociais ou humanitários. Em suma: o ser humano apresenta uma tendência a analisar sua vida quando torna-se sexagenário ou quando adoece de doenças graves ou mesmo terminais8,9.
E por que não analisar antes? Muitos consideram que, se lhes fosse possível, voltariam atrás em muitas decisões tomadas; que teriam mais tempo para suas famílias; que cuidariam melhor de si e de sua saúde física e mental. Por que não fazer isto agora, enquanto você lê este texto? Por que não buscar um padrão de Qualidade de Vida que envolva uma saúde melhor, sem precisar que a incerteza da morte ou o infortúnio da doença nos ameace10?
Portanto, é preciso saber se há associação entre Espiritualidade e Qualidade de Vida. Nos anos 90 muita coisa já se conhecia e novos estudos vieram a corroborar: fortalecer Espiritualidade promove redução de 23% da mortalidade entre 21-61 anos11; menores índices de HAS12; fator de prevenção de depressão e ansiedade; menor uso de álcool e drogas; melhora imunológica – conforme estudo do Professor Mário Peres e colaboradores13; redução do divórcio; satisfação matrimonial e sexual; felicidade e bem estar psicológico14. Outras publicações em revistas das mais diversas sociedades e com fator de impacto respeitável mostram menores índices de doenças cardíacas, doenças imunológicas, doenças inflamatórias sistêmicas, mais proteção contra o câncer, maior longevidade. Entre vários artigos, uma revisão integrativa de 10 anos de estudo (entre 2007 e 2017) mostra o impacto da Religiosidade / Espiritualidade na Qualidade de Vida, auxiliando no tratamento de diversas doenças e ainda no processo de cura15-18. No Brasil, a Sociedade Brasileira de Cardiologia foi pioneira na inclusão da ferramenta Espiritualidade na prática clínica. O Professor Álvaro Avezum declarou que a parede entre Medicina e Espiritualidade está em colapso: médicos e outros profissionais de saúde descobriram a importância da oração, da Espiritualidade e da participação religiosa na melhoria da saúde física e mental, bem como para aliviar situações estressantes da vida19.
E em que contexto entra a Dor?
Dor também é espiritual, psíquica, financeira, social.
Um dos conceitos mais respeitados na ciência da Dor é o conceito de Dor Total de Cicely Saunders, algo bastante amplo. Ela percebeu a presença de um estado complexo de sentimentos dolorosos. Os componentes da Dor são: Dor física; Dor psíquica (medo do sofrimento e da morte, tristeza, raiva, revolta, insegurança, desespero, depressão); Dor social (rejeição, dependência, inutilidade); Dor espiritual (falta de sentido na vida e na morte, medo do pós-morte, culpas perante Deus). Mais recentemente acrescentou-se: Dor financeira (perdas e dificuldades); Dor interpessoal (isolamento, estigma); Dor familiar (mudança de papéis, perda de controle, perda de autonomia)2.
Vivência pessoal da Espiritualidade.
A rede de apoio religiosa e a vivência individual da Espiritualidade estão relacionadas com o controle da dor e a saúde do corpo, uma vez que modificam a resposta imune, interferem nos níveis de neurotransmissores estressores e regulam os níveis de hormônios glicocorticoides20,21.
Manter atitudes mentais positivas.
Assim como manter atitudes mentais positivas, a vivência religiosa pessoal ou institucional pode melhorar a resposta imune neuro-hormonal e auxiliar na manutenção da saúde e prevenção de doenças. Ela também contribui para o melhor controle da dor e qualidade de vida em geral. A vivência da fé, de práticas espirituais e vínculo com uma comunidade religiosa (ainda que a distância ou por redes sociais) protegem nossa saúde e nos fortalecem para superarmos as dificuldades trazidas por doenças de alcance individual ou coletivo (como o coronavírus)22.
O que fazer em momentos difíceis?
Momentos difíceis – como o isolamento social – podem trazer a chamada angústia espiritual. Essa angústia se traduz por questionamentos quanto à fé e dificuldades na relação com Deus ou perda do senso de sentido da vida. Tais percepções deprimem a resposta imunológica, pioram o controle da dor e predispõem a piora da saúde global. Um exemplo é o enfrentamento da epidemia e o isolamento social que exigem de nós a necessidade de compreendermos nossas limitações e aceitarmos as dificuldades sem cobrança ou culpa. Buscar sentido e significado nas crenças ou práticas pessoais também pode ser uma estratégia para reduzir o estresse e trazer o senso de paz e conforto necessários nesse momento10,22.
A Espiritualidade e as doenças.
Há aumento significativo nas evidências que suportam a inclusão de avaliação da Espiritualidade no diagnóstico e tratamento dos pacientes com dor e diversos autores apontam que a Espiritualidade está relacionada ainda com inúmeros benefícios à saúde. Médicos, enfermeiros, psicólogos, fisioterapeutas e outros agentes de saúde podem agregar maior cuidado aos seus pacientes ao perceber que a abordagem da Espiritualidade pode beneficiá-los, melhorar sua prática clínica e auxiliar nos processos de recuperação das doenças18,23.
Uma realidade a mudar!
Segundo Balboni MJ et al. (2007), a maioria dos pacientes afirma que gostaria que seus médicos abordassem suas questões espirituais24. Entretanto, em uma pesquisa posterior (2014), verificou-se que 23% dos enfermeiros e 45% dos médicos acredita que não é seu papel profissional falar sobre Espiritualidade. Destes, 60% afirma que não o faz principalmente por não se sentir preparado e adequadamente treinado25.
Transformar esta realidade é mais fácil que imaginamos.
Um dos maiores pesquisadores em Espiritualidade, Professor Harold Koenig, da Duke University comprovou que apenas 150 minutos de treinamento em como abordar Religiosidade/Espiritualidade seriam suficientes às universidades para desenvolver esta área de competência e preparar seus estudantes para interpelar profissionalmente a Espiritualidade de seus pacientes26.
Como se beneficiar de outras formas com este conhecimento?
O isolamento social nos faz conviver mais de perto com as pessoas que moram conosco. Nos deixa com mais tempo para interagir pessoalmente com elas e, através das redes sociais, com os que estão distantes. Desentendimentos são comuns neste processo10. Segundo Rasmussen KR et al. (2019), em um mundo onde a experiência de ferir e ofender é quase inevitável, os resultados encontrados são consistentes com a noção de que as respostas a essas ofensas podem alterar nossa saúde física e psicológica, e que uma resposta que inclui o perdão pode promover uma série de resultados positivos para a saúde27.
Quem não guarda mágoa é mais feliz! Quem perdoa é mais feliz!10,28,29
Estados afetivos negativos como depressão estão associados a mortalidade prematura e aumento do risco de doença cardíaca coronária, diabetes mellitus tipo 2 e outras alterações que, contextualizando com nosso momento presente, são também fatores de risco para covid-19. Em homens e mulheres de meia idade, pensar e agir positivamente são fatores protetores para lesões cardiovasculares, neuroendócrinas e inflamatórias, mas os caminhos pelos quais tais efeitos podem ser mediados são ainda pouco compreendidos. O efeito positivo foi avaliado agregando experiências momentâneas de felicidade durante um dia de trabalho e esteve inversamente relacionado à produção de cortisol ao longo do dia, independentemente da idade, sexo, posição socioeconômica, massa corporal e tabagismo. Padrões semelhantes foram observados em um dia de lazer. Steptoe A et al. (2005), demostraram que a felicidade também foi inversamente relacionada à frequência cardíaca avaliada usando métodos de monitoramento ambulatorial ao longo do dia. Os participantes deste estudo foram submetidos a testes de estresse mental em laboratório, onde as respostas ao estresse por fibrinogênio plasmático foram menores em indivíduos mais felizes. Estes efeitos foram independentes do sofrimento psicológico, apoiando a noção de que o bem-estar positivo está diretamente relacionado aos processos biológicos relevantes para a saúde28. Outro recente trabalho sugere que a medida que perdoamos mais nos tornamos menos emocionalmente reativos e à medida que nos tornamos menos emocionalmente reativos, aumentamos nossos níveis de felicidade29.
Altruísmo, Empatia, Felicidade e Saúde.
Post SJ (2005) conclui que há uma forte correlação entre bem-estar, felicidade, saúde e longevidade nas pessoas emocionalmente gentis e compassivas (caridosas ou prestativas) – desde que não sejam sobrecarregadas – e aqui a visão de mundo pode entrar em jogo. Naturalmente, essa é uma generalização populacional que não fornece nenhuma garantia para o indivíduo. Sugere que uma vida generosa é mais feliz e saudável e que nos aproxima da nossa verdadeira natureza. Epidemiologia, Espiritualidade e amor podem entrar em um diálogo frutífero. A vida pode ser difícil e a morte não deve ser negada. O amor, no entanto, torna o caminho mais fácil e saudável tanto para quem dá como para quem recebe30.
Fazer o bem faz bem! Felicidade é uma decisão!
Quem faz o bem é mais feliz e quem é mais feliz faz mais o bem! Isso se torna um ciclo de retroalimentação positiva31,32.Seja generoso, contacte pessoas! Retome relações! Perdoe, peça perdão, se perdoe29! Seja grato! Doe seu bem mais precioso: seu tempo! Faça este desafio! Aproveite a oportunidade! Você não tem nada a perder10!
Uma das mais respeitadas pesquisadoras sobre felicidade, Sonja Lyubomyrski, afirma que 40% da nossa felicidade é uma questão de decisão32.Decidamos olhar o lado positivo10!
REFERÊNCIAS
Dr. Rui Nei Araújo Santana Junior
Neurocirurgião | CRM – 20692